Saturday, December 19, 2009

Liberdade de expressão


Eles caminham por uma densa floresta, as árvores são baixas, estranhamente baixas. A zona mais baixa das copas quase lhes toca na cabeça. É Outono e as árvores à sua volta brilham douradas, vermelhas, castanhas e amarelas. O chão da floresta está coberto por um manto de folhas secas das mesmas cores que as árvores.
Andam de mãos dadas. Ele com o seu cabelo castanho, quase preto… Está vestido com uma túnica azul-escuro e umas calças de linho beges. Os seus olhos são pretos e profundos e ele amarra com uma mão forte a suave mão dela. Ela tem os cabelos lisos, ruivos e veste-se com uma camisola verde de lã e uma saia comprida até abaixo do joelho castanha escura. Os seus olhos são cor de mel, delicioso mel. Ela prende o cabelo, da frente atrás com um laço feito com um fio de couro castanho, no cabelo dele, do lado direito há uma madeixa de cabelo mais comprida que o resto, e toda ela está amarrada por uma fita vermelha.
Eles namoram e no início ele tinha o cabelo mais comprido e atava-o atrás e ela tinha-o muito mais curto mas atava-o da mesma maneira.
Percorrem aquela floresta de olhos fechados pois não conseguem olhar um para o outro. Não aguentam o olhar um do outro porque sabem o que têm que fazer e o que isso levará a acontecer. E por estranho que pareça ambos pensam no dia em que se conheceram.
“Ela conduzia a velha carrinha do seu pai, passava rente entre as árvores. Transportava a fruta acabada de colher, do pomar para a fábrica de tratamento da fruta. Era o que ela sabia fazer, era o trabalho dela, era o que lhe tinham ensinado. É a pequena missão da sua simples vida. Ela era ainda jovem e não sabia nada da vida para além disso, muito menos sobre rapazes.
Chegada à fábrica, um jovem rapaz apareceu vindo de dentro para descarregar o que ela trazia, era ele. Era muito bem parecido e pela aparência um pouco mais velho e mais alto que ela. Começou a descarregar a carrinha sem aviso e quando ela saiu da carrinha para o ajudar ele disse:
- Não precisas de ajudar…
- Não?
- Não…
- Não preciso, mas assim é mais rápido. – E sem lhe prestar atenção começou também a descarregar.
Ao fim de um demorado silêncio ele voltou a falar
- Não devias estragar as tuas mãos. São demasiado bonitas para isso.
- Obrigada. – Disse corando intensamente.
Isso foi o suficiente para a fazer parar. Ela encostou-se à carrinha e pôs-se a brincar com as luvas que usava para carregar as caixas que tinha guardado no cinto dela.
- De nada. As verdades são para ser ditas. – Disse ele com um sorriso na cara. – Bernard.
- O quê? – Perguntou aparvalhada.
- Bernard! O meu nome é Bernard…
- Ahhh, sim! Sim, claro. Lúcia. Chamo-me Lúcia…
- Então olá Lúcia.
- Olá. És novo por cá?
Ela questionava-o agora curiosa pela espontaneidade daquele rapaz estranho mas querido. Ele estava continuamente a entrar e a sair do armazém a levar as caixas mas isso não os impedia de falar.
- Sim, sou. Antes trabalhava nas lojas enquanto era jovem e engraçado e as senhoras achavam-me piada e isso incentivava-as a entrar e comprar por causa do meu aspecto. Trabalhava com a minha mãe, agora trabalho aqui com o meu pai, o Hugo.
- És filho do Hugo?
- Sim…
- É um bom homem…
- Sim, é…
- E aposto que ainda atrais as senhoras… – Disse desafiadoramente.
- Desculpa?
- Ahhh… Nada…
- Vá lá! Não ouvi…
- Disse que ainda deves atrair as senhoras.
- Sim, mas só as mais velhas
- Isso não pode ser verdade, porque eu até acho que sou mais nova que tu! - Disse enquanto entrava na carrinha e ligava o motor.
- O quê?
- Até logo senhor Bernard…
- É só Bernard… Lúcia… – Chamou quando ela já se desviava.”
Eles encontraram-se muitas vezes depois desse primeiro momento e a amizade aprofundou-se de cada vez que se encontravam. Tornaram-se muito íntimos e passavam todo o tempo que podiam juntos.
Lembram-se de todos os momentos bons que passaram juntos e que partilharam, alguns são mais vivos e mais reais, outros estão mais apagados e esquecidos, mas o facto de darem as mãos e estarem assim um tão perto do outro, traz lembranças esquecidas à tona, como o primeiro momento em que o namoro se viu.
“Era Verão. Encontravam-se por baixo de uma árvore solitária ancestral no cimo de uma pequena colina verdejante. Fazia muito calor e eles estavam deitados na relva fresca, sob a sombra para se refrescarem, nem que apenas um pouco. Bernard olhava para o céu com os braços por baixo da cabeça, com um olhar inquiridor, pensando em mistérios na cabeça dele. Lúcia estava deitada ao lado dele, de olhos fechados com um suave sorriso nos lábios.
Bernard levantou-se, olhou para baixo, para ela, e disse:
- O dia está muito bonito.
- Pois está… – Falou sempre de olhos fechados.
- Não há nuvens… Faz um calorzinho bom…
- Humm humm…
- Ainda bem que fugimos ao trabalho.
- Pois…
- É bom estar aqui sem fazer nada…
- Diz lá o que queres de uma vez Bernard…
- Bem, é que… tu sabes… – Tentou dizer muito atrapalhado pela frontalidade dela. – Sabes sempre o que quero fazer… que chatice…
- Sim, pois… E quando é que te vais decidir a dizer-me o que queres?
- Sim… Bem… Não é bem dizer-te. - Disse ele corando. – Eu mostro-te…
Baixando-se sobre a cara dela fechada, dá-lhe um suave e breve beijo nos seus doces lábios róseos. Sem abrir os olhos, Lúcia admirou-se e mostrou alargou o seu leve sorriso. Ele sem saber o que fazer voltou a deitar-se envergonhado.
De súbito Lúcia levantou-se rapidamente, olhou para baixo para Bernard e sem avisar puxou-lhe o fio de couro que lhe atava o cabelo e prendeu o dela. Ela tirou a fita vermelha que lhe prendia o cabelo e estendeu-lha a ele.
- Enquanto estivermos juntos isto não pode sair do teu cabelo.
- Nem para tomar banho?
- Ok, excepto quando tomares banho…
- E se eu quiser cortar o cabelo? – Perguntou sorridente.
- Também pode ser. - Disse revirando os olhos. – Mas que menina. – E riu-se. Riram-se ambos. – Mas em mais nenhuma circunstância.
- Tudo o que a princesa desejar… – Gozou fazendo uma vénia sentado.
Juntos riram-se naquela longínqua e doce tarde de Verão.”
Agora lembram-se desses bons momentos e já sentem saudades e desejam poder voltar atrás com todas as suas forças. Mas sabem que isso é impossível, que nunca vai acontecer, que por tudo o que possam fazer nada trará o passado de volta.
Todos da comunidade vivem oprimidos pelos desejos daquele tirano, daquela horrível pessoa que insiste em fazer a sua vontade ser cumprida. Toda a gente trabalha para o Lorde Xifon, para fazer a sua riqueza aumentar a olhos vistos cada dia. Todas as suas vidas são guiadas para agradar, para dar prazer a essa criatura desprezível. Tudo o que fazem é para agradar àquele opressor que todos odeiam, de quem toda a gente se quer ver livre, mas contra quem ninguém faz nada. Têm medo do que possa acontecer aos seus, do que ele possa fazer.
Eles caminham pelo meio daquela floresta acompanhados por muitos outros como eles. Todos estão silenciosos, todos estão cabisbaixos, todos estão cientes do que vão fazer, da posição que tomaram e que vai mudar as vidas de muitos. Depois da escolha tomada, da posição escolhida não há volta a dar, todos sabem disso, e agora era tarde para voltar atrás.
- Desculpa. - Disse Bernard, quebrando o silêncio no qual andavam, olhando para ela.
- De quê? – Perguntou Lúcia admiradíssima.
- De não te poder proteger… De te levar a fazer coisas… De te trazer para aqui… para o meio disto…
- Pára. – Disse estacando e agarrando com as duas mãos a cara dele. – Eu estou aqui porque quero. Sabes que sim…
- Sim, eu sei, mas preferia que não estivesses, que não o quisesses… mas adoro que estejas aqui comigo…
- É onde quero estar, quero marcar uma posição. Quero fazer algo importante, não posso deixar que os outros façam tudo por mim. E quero estar sempre do teu lado…
- Mas e os teus pais? Disseste-lhes?
- Porque é que só agora queres saber? É claro que não sabem… – Disse virando a cara. - Deixei-lhes uma carta a explicar.
- Deve ser melhor assim…
- É… Talvez… Eles hão de compreender. Hão de ultrapassar tudo…
- Sabes que no fim quem vai pagar são os que ficam…
- Sim, eu sei, vai custar a todos… Mas eles são fortes, todos eles…
Chegam ao seu destino, olham em volta e vêem os seus rostos espelhados nos rostos À sua volta, o medo, a dúvida, a coragem. Sentem o vento a bater nas suas caras enquanto vêem outros que já avançaram. Olham um para o outro.
- Tens a certeza disto? – Perguntou ele.
- Sim, tenho. – Mas os seus olhos mostravam dúvida e estavam marejados de lágrimas, reluzentes á luz do Sol.
- Depois não há volta a dar… Sabes disso… – Não era uma pergunta.
- Sim… mas estou contigo, por isso não tenho dúvidas.
- Então? Pronta? - Também ele já tinha lágrimas prontas a serem vertidas.
- O melhor que consigo…
Sem aviso imitam tantos outros à sua volta e dão um passo em frente, para a luz intensa do entardecer. O vento passa à sua volta. Caem tão rápido que não conseguem sentir o ar. Eles choram, abraçam-se, beijam-se com um fervor que nunca antes sentiram. Eles tentam ter tudo antes do seu prematuro final. Então segundos antes, acalmam-se e deitam-se lado a lado no ar e olham nos olhos um do outro…

Friday, December 4, 2009

Carapaça

Acordou sobressaltado numa cama ensopada em suor. E foi no momento do seu sobressalto que deixou de o sentir. O sentimento interrompeu-se.

Sentia-se febril, doente. Se tivesse olhado o relógio, teria visto que faltava pouco para as dez da manhã, mas houve algo que o intrigou. A luz amarela do sol lá fora não era a mesma que dava luz ao quarto. Essa luz vinha de perto da porta, mas a sua proveniência estava escondida pelo guarda-fatos. Apesar de ser uma luz branca, era acolhedora, quente. Não conseguia ver de onde a luz provinha, mas sentiu curiosidade suficiente para ir ver.

Contudo, antes de conseguir sair da cama, o sol apagou-se. Agora, o próprio quarto brilhava aquela estranha luz de volta para o ar, como se a reflectisse. E então uma voz falou.

- Escusas de te levantar. Não me podes ver.

- Não és tu que eu quero ver.

- Então vem.

Apesar da vontade, de novo ele não saiu da cama, pois antes de pôr os pés no chão, uma esfera de um prateado puro levitou desde o canto que o guarda-fatos fazia com a parede até à frente da sua cama. Era essa esfera que iluminava tudo, e o seu coração começou a bater mais depressa quando a viu. A sua voz tornou-se rouca, cava, ao dizer:

- O que é isto?

A voz não lhe respondeu, porque sabia que a pergunta não era para ela. O olhar dele fixou-se somente naquela esfera, onde conseguia ver imagens imperceptíveis, mas que lhe causavam medo, dor, frustração, nostalgia, paixão, receio, alegria, pena, incerteza, susto, e mais vinte mil leques de emoções que ele não soube reconhecer. E apesar de não se ter apercebido, ele sentiu tudo isso ao mesmo tempo, durante o tempo em que ficou estarrecido olhando a bola flutuante.
Num instante o esférico desfez-se em pó, e o seu coração voltou ao estado normal. A magnífica poeira continuava a iluminar o espaço, com aquela sua luz muito característica. Sentiu-se triste pela perda da forma esférica, mas recompôs-se tão rapidamente que nem se apercebeu que ficara triste.

- Desculpa - disse a voz, arrependida.

Antes de conseguir perguntar porque a voz pedia desculpa, todas as microscópicas partículas pirilampescas explodiram num clarão que lhe cobriu os olhos de branco. Não entrou em pânico à conta disso, mas sim da forma que sedosamente aparecia por entre a névoa branca, à medida que esta desaparecia. Era uma figura de mulher, tão eloquente nos seus passos em direcção à sua cama. Luminescia da mesma forma que a esfera que desaparecera.

O seu coração começou a correr mais depressa do que alguma vez o fizera. A sua garganta apertou-se, quase cortando a passagem do ar, e a sua visão entorpeceu, à medida que a água lhe assomava aos olhos cautelosamente. Não conseguia falar, e a mão que ergueu para acariciar aquela figura conhecida tremia. A mulher sorriu, e ele tristemente sorriu de volta, fazendo lágrimas cair na colcha. A voz atrás do guarda-fatos fungou. A mulher aproximou-se dele pela lateral da cama, e ele aproximou a mão do seu cabelo de luz.

Os dedos não lhe tocaram, mas ele sentia neles um calor humano, enquanto que eles e a luz ocupassem o mesmo espaço. E apesar de ser só luz, sentiu um cheiro que não estava no quarto, sentiu vozes tão difusamente fracas que não podiam estar a ser pronunciadas naquele momento, e sentiu clarões de imagens que ele não estava a ver. Assustou-se e retirou a mão. A mulher usou os lábios para desenhar palavras no ar que não obtiveram som, mas ele percebeu o que fora dito. E do nada, a voz falou.

- Acabou.

A luz precipitou-se na direcção do seu peito e de lá não saiu. Com a cabeça deitada no travesseiro, chorou lágrimas que não sabia serem prateadas até adormecer, olhando na sua mesinha de cabeceira um momento congelado que a mesma pessoa que o visitou vivera. Em tempos.