Wednesday, January 16, 2019
Ruas de Portugal numa Noite de Inverno
Poderia passar um Ramalhete a descrever
O tom dourado do breu
Com que a luz enche as ruas de Portugal
À noite, no Inverno
Parece que entramos nela, e ela em nós,
Com o silêncio dos nossos passos no asfalto
A marcar o ritmo da eternidade
Há uma fonte de
Ténue e contínuo gorgolejar que
Na orla da cidade
Ameaça parar no momento a seguir...
A seguir, a seguir, a seguir,
Mas que teima cantar o passar do tempo gota
A gota.
A luz incide na minha mão e não me deixa ver
O que escrevo.
Faz sentido - não é para agora.
É para alguma rua fria de Portugal
Sem o orvalho à luz da noite alta,
Para que nos sirva de ténue lembrança
Baça, mas que perdura,
Ao som dos nossos passos lentos
Contra o teimoso correr do tempo.
Thursday, January 12, 2012
Excerto de Um Retrato de Uma Confissão
Pois olha, vai para a puta que te pariu. Se soubesse o que sei hoje, tinha-te deixado lá a morrer ao frio - melhor, tinha-te dito que iria e tinha-te deixado à minha espera, para que sentisses dentro de ti aquele calor de esperança, de não tarda estarei bem, para que ele fosse esmorecendo aos poucos, até só te restarem cantos frios da alma. Devias ter lá ficado, sentada no passeio, vendo as pessoas indo para casa, mais ao menos bem, mas para casa ainda assim. Doía-te a cabeça? Não tivesses ido. Tivesses ficado em casa, a estudar, ou comigo.
Queres estar comigo agora? Vai-te foder. Só que não to consigo dizer. Ouço a tua voz e tudo o que consigo fazer é anuir sabendo perfeitamente que o que deveria fazer era precisamente mandar-te foder, cobrar-te também por aquilo que me cobras. Anuo e vou, vou-te buscar, um quarto de hora estou aí.
E não sabias, mas não deveria ter ido, enfrentei obstáculos e pessoas indesejáveis, enfrentei vergonha e embaraço, tu não o merecendo. Mas pés à estrada, estás à minha espera. Pés à estrada... pés à estrada. Não tenho razão absolutamente nenhuma para isso, mas toca a meter os pés à estrada! Nem sequer mo pediste, disseste-me inclusivé que não fosse, mas pés à estrada e lá vou eu! Credo, como eu te odeio. Soubesse o que sei hoje... Na verdade, já sabia. Na verdade... Eu não queria ver. Mas não tendo reconhecido o devido... pés à estrada.
Thursday, December 8, 2011
Carta a Um Fantasma
Quero agradecer a tua inexistência - dou graças por não existires. Porquê? Porque materializarias tudo o que eu desejo em alguém, e se existires, quem me garante que serás perfeição para mim? Hm? Quem é que me diz o futuro? Prefiro ir coleccionando pedaços de ti ao longo do tempo.
Acho que já tenho alguns, sabes? Acho que já encontrei alguns pedaços da tua alma, mundo fora, e guardei-os para mim; sou eu quem os tem. Não sei se já o sabias... não vieste à minha procura...
Mas hoje... esta noite... queria que estivesses comigo. Agora. Preciso de ti, preciso de braços, preciso de peito, preciso de pele... e de coração. E alma, preciso de alma. Mas é como te digo: se não existes, como é que eu te posso desejar, e querer perto? Essa é outra pergunta... Como é que posso querer a alguém... que existe dentro de mim apenas?
É por isso que te escrevo. Falar-te, escrever-te... comunicar contigo... é como se te criasse, é como se existisses no mundo, só estando longe. Com esta carta a um fantasma faço de ti carne e osso, pele e órgãos, realizo-te, crio-te - a partir do nada. Por isso, e porque agora existes, peço-te, atende ao meu pedido, volta.
Vou estar à tua espera. Já sei como és, conheço-te... Vais-te fingir de desinteresse, vais dizer "agora não posso... estou com demasiadas ocupações", vais-me gozar, só para veres a minha cara vestida de espanto falso quando realmente te vir chegando... Porque eu sei que te dá um gozo enorme excederes as expectativas que achas que me impuseste... Pois olha, estou esperando. Não demores muito.
Tuesday, November 8, 2011
Quando a Razão Não Chega
Sonho com uma rapariga: uma moça baixa, de cabelos simples, escuros, caídos livremente sobre as lâminas dos seus ombros. Deveria aparecer à minha porta sorrindo, do nada. Deveria agora bater à porta entre nós e entrar, para que eu descobrisse que ela não passa da namorada do meu colega de quarto.
Não seria uma peça marcadamente diferente das outras que compõem o mosaico da minha vida. Caberia nele perfeitamente. Entrasse uma moça na minha vida haveria nela algo, descoberto sem querer, que faria de um nós uma tragédia.
E foi assim que me apaixonei pela minha prima. O grande perigo das famílias zangadas que cortam contacto materializou-se naquele supermercado. Ela não tem cabelo escuro, mas será essa a única diferença entre ela e a moça que muitas vezes, vezes demais, entra nos meus sonhos conscientes. Já a vi entrar pela sala de aula adentro, pelo meu quarto adentro, sentar-se ao meu lado no autocarro, atender-me no hipermercado, mas nunca a vi entrando pela casa da minha avó adentro, como decerto alguma vez fez. Acontece muitas vezes na vida, calculamos de mil maneiras diferentes um certo cenário, e ele sai sempre ao contrário.
Quando soube, não soube o que sentir. Senti só as pernas fugirem-me para longe, um formigueiro no cérebro e o coração batendo forte em descrédito. Mas a verdade estava aí, ela em vez da moça de cabelos escuros, e eu que me amanhe em aceitá-la, a verdade está-se a cagar para quem ela é e o que faz aos outros.
Ela não sabe - mas desconfia, acho eu. E o meu nervosismo ao pé dela só lhe corrobora as desconfianças. Por isso, afastei-me um bocado. E isso só lhe confirmou as desconfianças já de si corroboradas, certamente. Não sei o que fazer, dói-me a alma de se sentir bem o coração.
Corre-lhe sangue do meu nas veias. Não sei o que fazer, não sei como sair deste círculo. Já a desejei, e agora nego a mim mesmo que ainda a desejo.
Não sei o que faça. Divido-me entre a inerência e inevitabilidade do nojo e a alegria. Um parentesco, corrompendo toda a pureza deste mais nobre dos sentimentos, esta paixão incorpórea. É razão? Não?
Foda-se. Estou fodido.
Wednesday, October 26, 2011
Monólogo sobre estar farto
De algo demasiado é que saem estas palavras desimportadas da linguagem. É demais dentro de mim, e demais o meu desconhecimento desta demasia, escorrem-se ambos de mim em monólogo para audiências externas e internas, correm a aliviarem de mim o fardo que é carregar sozinho um peso que é para partilhar comigo mesmo se os outros não estão disponíveis ou queridos. Correm porque de faca em punho os expulso de mim, de bom grado cá ficavam, morrinhando nos cantos mais inexplorados da alma que sendo minha com eles partilho. Mas não pagando renda, rua, vadios, ide-vos! Pelas palavras bazai daqui, deixai-vos do beatério sobre o meu eu mais profundo, pelas palavras vos expurgo d'i.
Já estou melhor. Até daqui a um bocado.
Thursday, August 25, 2011
Violoncelos e Sacos de Cimento
Oupa! Aqui vai! Ora... vamos lá...! E trôpegos sob o peso extra meus pés me levam rua fora, empunhando um violoncelo como se de uma espingarda se tratasse, daquelas que se viam passeando avenida fora, vomitando um cravo num abril do passado. As pessoas olham quando passa o gigante, castanho, imponente. Apesar dos queixumes que já sinto do ombro, sinto-me bem com a atenção. E para servir a dois propósitos, baixo o instrumento, sento-me na mureta da avenida e, com aquele corpo entre pernas, armado de um arco, começo a disparar flechas.
Uma senhora atarefada que passava mesmo à minha frente, desapercebida de mim, pára mal ouve a primeira nota. Prolongo-a, lenta, melodiosa, bela. A senhora pousa o saco das compras, já lhe doerão os dedos, pára, escuta e olha. Suspendo a nota, e no momento certo, atiro com a segunda e a terceira, já não tão lentas... mas ainda assim, quero primeiro chamar à atenção. Só depois inicio a música ao ritmo normal.
Não levanto a cabeça uma só vez, olhos trancados no cavalete e no braço, escorrendo cordas abaixo, cordas acima, à medida que arco, de um lado, e dedos, mais acima, modulam o ar à minha volta. O som reverbera por entre o ar, faz vibrar as gotas de oxigénio, sinto-o nos meus ouvidos, sinto-o na pele, sinto-o no suster de respirações de quem me segue o olhar. O meu gigante castanho não se queixa, estará a gostar da atenção tanto ou mais do que eu, já que ele é a estrela que todos observam.
Há quem bote uma moeda para a minha frente, e é então que levanto a cabeça para observar. É um senhor em idade de reforma, mas jovial em aparência e trejeitos. Arrepio caminho por entre a pauta na minha cabeça, mas não deixo de o olhar por uns momentos. Quando acabo a música, palmas soam, entre elas a dele, e é a ele que digo "Meu caro senhor", apanhando do chão a moeda de dois euros, "não quero dinheiro, obrigado. Agradeço-lhe o afecto que representa, mas não quero mesmo dinheiro, não é por isso que toco na rua", parece embasbacado. Recebe o dinheiro de volta e enfia-o no bolso. "Então tocas mais um bocado", e agraciando-o, inicio mais uma melodia.
Atiro com as notas para o ar, como fiz à moeda. Paguem-me com o que lhes dou, com som. Paguem-me com o som das palmasm, que é por isso que ando tanto de violoncelo ao ombro, e se realmente me querem dar algo do mundo, paguem-me uma sandes e uma cerveja. Para que amanhã, depois da tortura que será o resto da viagem de hoje, os meus ombros alimentados se queixem um pouco menos quando começarem, ao raiar do sol, nos sacos de cimento.
Friday, August 19, 2011
2. A Fome
Quando voltares, a única coisa que te darei será um prato de sopa.
Se voltares, farei para que tenha um prato de sopa quente para te receber.
Volta, por favor.
Volta, e dar-te-ei tudo. Dar-te-ei o meu mundo.
Um prato de sopa e um naco de pão seco.
Wednesday, August 17, 2011
3. A Morte
Não é um acto simbólico de ciclicismos da vida. Não vim por um arrependimento que, chegada tão perto a hora da morte, me obriga a tentar colmatar falhas do passado - e falhar. Não é um acto de egoísmo, não vim para que me vissem falecer os que compartilham do meu sangue, e por sua dor se compadecessem de mim. Não vim porque não tinha mais para onde ir, Ribeira de Pena é o último sítio em que penso como sendo um possível refúgio. Vim para Ribeira de Pena porque aqui não há barulho, e quero ouvir as asas da morte chegando.
Não me importo de reviver as memórias de um passado tão doce quanto mais distante, não me importo de me rodear dos que me são próximos, dos meus amigos de infância e dos irmãos que me restam, e tão-pouco me importo se um amor do mais-que-perfeito me revisita e me faz provar do fantasma daquele sentimento de fuga, violação de regras, hormonas e pele. Mas no fim, não importa. Vim morrer a Ribeira de Pena porque sei que a morrer, morro só, e mais vale só que mal acompanhado.
Wednesday, August 10, 2011
1. A Guerra
Todas as semanas era realizado o que os outros chamavam um rito fúnebre, ao Domingo, como de costume. Os meninos viam ser enterrados os corpos dos seus papás, que chegavam no Sábado ainda fora dos caixões, apressada e disfarçadamente envoltos em mantos, sabiamente negros. Caixões não preparados para os que chegaram, mas para os que viriam, alguém, quem, não sabiam. Não sabiam que nomes pôr no mármore, sabiam apenas que havia mármore a ser preparado e caixões a serem envernizados.
Todos os dias havia reunião no adro da igreja para ouvir notícias da guerra. Todos os dias um oficial do governo era enviado pela Cidade para dar as novas, de aldeia em aldeia, do que se passava 'lá fora'. 'Lá fora' era o que diziam, para nos distraír do cá dentro, um reboliço parecido ao da guerra. Um reboliço que se tentava apaziguar, amainar, ao contrário da guerra lá fora. Todos os dias, viemos a saber no fim, isolados de quem nos fora tirado, aprendemos de que morriam uns e iam a morrer outros e queriam ir morrer mais uns ainda por causas mentidas. Mas todos os dias, no fim de missas diárias, rezadas pelas almas dos que partiram, íamos ouvir o que o senhor de fato, fato como nenhum de nós tinha ou sonhava existir, sabia da guerra. O que nós não sabíamos, nem nunca soubemos.
Todos os sábados apertávamos corações e tomates para irmos ouvir morrer amigos e maridos, de se lhes dizer o nome. Eram sentenças passadas pelo senhor de batina, cujo único resultado era ou vida ou morte. Ou morte. Com palavras em maiúscula éramos ceifados das nossas esperanças, ceifados que eram os nossos irmãos pela boca do padre, nossos pais, filhos, enamorados, noivos até, maridos e cunhados, padrastos, padeiros de todos os dias e leiteiros de de vez em quando, e o senhor dos pombos, o porteiro da escola, o senhor doutor da nossa terra, que fora cuidar dos coitados, sará-los daquilo que o que lhes era imposto lhes fazia, ah, e o rapaz do futebol, que tão bem que ele jogava, não morreu mas ficou sem uma perna, e o amigo dele, que o desamparou do outro lado, caíam que nem tordos, os que nos saíam da beira, levados por Alguém, iam voar e vinham cair os corpos à terra que os viu nascer, e que era lei que os visse mortos, porque morrer não podia ver que iam morrer longe, vinham chover as carcaças que ficavam, lembrar-nos que tantas vezes víramos aqueles rostos vivendo em várias dezenas de alturas, vivos, chorando ou rindo, comprazendo-se ou dolendo, não importa, mexiam membros e diziam cousas, eram nossos vizinhos e nossa família, e foram para o estrangeiro morrer, longe de quem lhes queria bem, de quem não queria que fossem, longe do regaço da mãe e do colo da enamorada, longe até da mão dura do pai que tão bem que sabe o raro carinho, iam para o desconhecido, armados com o que não lhes fazia falta dentro portas, e desarmados do importante, lanternas para ver no escuro, açorda da mãe, caldo verde da avó, doce de laranja da mana mais velha, que tão bem que faz doçaria, chora agora a coitada desalmada na calçada do cemitério, ela mais a noiva do defunto, pobre dela que viuvou antes ainda de casar, choram ambas que nem madalenas em frente aos portões da casa eterna, para onde vai o corpo do mano mais novo, vinha namorando a menina dos farias desde quando ainda era piqueno e só corria por entre prados, vai numa procissão de negro, mas a mana leva o doce de laranja que tanta falta fez ao joaozinho pelas terras inimigas, zinho o tanas, era já um homem, não se via o homem, feito que estava, arrepiando caminho para a cova, olha-o, vai atrás do pai e vem o filho dos correias atrás, onde é que era um menino, era joao de corpo e alma feitos, só não vai a enterrar pelo próprio pé porque a pé já foi ele para morrer, que descanse agora o homem corajoso, depois de tanta guerra, fome que terá passado, medo que terá tido, matança que terá visto, amizades sem que terá ficado, comandantes que o terão amedrontado, saudades que terá tido, cuecas que terá borrado, balas de que se terá safado, emboscadas que lhe terão acontecido, armas que terá disparado, vermelho que terá sangrado, sangue que terá derramado, loucura que o terá invadido, céu que lhe terá caído, terra que lhe terá fugido, alma que terá perdido, antes do corpo lhe ter perecido.
Sunday, April 10, 2011
Na palma da minha mão escrevias um mundo em mim. Escrevias amor paixão luz nudez eu tu. Tudo me dizia o mesmo, dizia-me o teu nome em tom grave de lume aceso. Arriscava-me a perder-te sem saber, mas naquele momento, em que escrevias na palma da minha mão com os teus dedos, perdíamo-nos os dois num mundo alheio. Exista somente eu para ti, e existias somente tu para mim. Tudo o resto era negro, era nada. O tempo não passava, o espaço não importa. Importavam somente os teus olhos verdes da relva, e o meu peito palpitante. Importava a luz solar que te iluminava para mim, ou o brilho apagado de uma lua nova que nos escondia do mundo que não nos pertencia. Queria dar-te todo o meu eu, todo o meu eu ardido por um lume que só o teu corpo conseguia abafar, e que crepitava quando os teus olhos verdes não estavam disponíveis para contemplar. Batia o meu coração corredor nas horas antes de te ver, antes de te abraçar, antes de te beijar, antes de fazer amor contigo, antes de te abraçar, outra e outra vez; batia o meu coração corredor nos momentos após te deixar, alimentado pelos resquícios do teu cheiro e do som da tua voz.
Na palma da minha mão leio um mundo engolido pelo tempo, leio um nada feito a partir de um passado que foi tudo. Foste tudo para mim, até te ires. Foste o meu mundo, foste parte integrante do meu eu. Eras eu e eu era tu, até te ires. De ti, ficam memórias de uns anos que foram os melhores anos, ficam presentes guardados em caixas amarrotadas de esquecimento, ficam as marcas indeléveis da tua passagem pela minha vida, e fica um amor que não encontrou par. De ti, fica um mundo só nosso, guardado algures na virtualidade de uma possibilidade que passou ao lado do real e do tangível. Fica um mundo que revisito, por vezes, em sonhos acordados, onde contigo estou de novo, vivendo o fantasma de um sentimento que me dominou demais para me abandonar por completo enquanto meu coração bater. Foste-te, e agora, sozinha, em frente à lareira, inspirada pelo crepitar de um lume que finjo ser o teu, revisito-te mais uma vez. E abraço-te só mais uma vez...
Tuesday, April 5, 2011
a negrura iluminada
o vazio do céu manifesta-se em mim
e eu pereço um pouco
já não olhas o céu comigo
quase nunca olhaste
eu olhava-o pleno
e nao te via a desviar o olhar
agora olho-o e a tua presença preenche-me
com o vazio
as estrelas iluminam a ausência de ti
o mundo à minha volta desaparece
e o nada enche-me de tudo
respiro um ar que me transporta
para onde tu estás
daí fico no mesmo sítio
a minha mão no vidro da minha janela
e a tua num algures do planeta
Monday, February 28, 2011
Nós feitos de ninguém
Para dizer "a ti"?
Para fazer "por ti",
"Contigo"?
A escrita é solidão.
Eu, a mim, por mim, comigo.
Tu não.
Se porventura falar num tu
Serão então cartas nunca enviadas
Não por vontade, ou coragem, ou inteligência,
Mas por sua inexistência.
São cartas a um ninguém presente,
A um alguém ausente,
E a ambos, simultaneamente.
Quem és tu, afinal? Tu, a quem dedico tantos textos?
És um eu que não existe,
Um eu em potência, em vontade;
Um eu em falta de verdade.
Não existes. Não existo.
Tu e eu somos um.
Falo comigo quando falo contigo.
Contudo, és ao mesmo tempo tu
Em ti mesma, tu própria
És um tu comigo
És - somos um nós.
Falo. em simplicidade,
Com Ninguém.
Falo pela simples necessidade
De falar com a folha.
Wednesday, February 16, 2011
Vazio
a olhar a parede vazia.
Ligo a televisão para ter companhia.
Não me apetece estar sozinho.
Apetece-me estar mal acompanhado.
Nunca me apetece estar sozinho.
Morro para o exterior do quarto.
Só existe o quarto.
Só existe o silêncio e a ausência, comigo.
Só existe a falta.
Só existe a inexistência.
Alapo na cama, completamente inanimado.
Contemplo a parede
Caído contra a parede oposta.
Acompanhado pelo vazio que inunda o quarto
e eu.
A ambos.
Inunda-nos a nós, toma o quarto para si.
E fora das quatro paredes vazias,
o nada.
o nada em todo o lado.
O meu coração bate, e dá sinais de vida.
Rapidamente é também engolido
Onde estás
...
quem és
Friday, February 11, 2011
Doloris causa
Se da mão, da cabeça ou do pé
Se dói tudo, ou se só dói uma por todas
As dores que julgo ter
E que parecem doer
E que sinto moer.
Não sei o que me dói.
Só sinto a dor
De lembranças e memórias
De medos e esperanças
E do presente.
Do Agora.
Retiro a venda. Começo a ver.
Doem-me os olhos
Tirem-me esta nova dor...
...
Ninguém.
Friday, December 4, 2009
Carapaça
Sentia-se febril, doente. Se tivesse olhado o relógio, teria visto que faltava pouco para as dez da manhã, mas houve algo que o intrigou. A luz amarela do sol lá fora não era a mesma que dava luz ao quarto. Essa luz vinha de perto da porta, mas a sua proveniência estava escondida pelo guarda-fatos. Apesar de ser uma luz branca, era acolhedora, quente. Não conseguia ver de onde a luz provinha, mas sentiu curiosidade suficiente para ir ver.
Contudo, antes de conseguir sair da cama, o sol apagou-se. Agora, o próprio quarto brilhava aquela estranha luz de volta para o ar, como se a reflectisse. E então uma voz falou.
- Escusas de te levantar. Não me podes ver.
- Não és tu que eu quero ver.
- Então vem.
Apesar da vontade, de novo ele não saiu da cama, pois antes de pôr os pés no chão, uma esfera de um prateado puro levitou desde o canto que o guarda-fatos fazia com a parede até à frente da sua cama. Era essa esfera que iluminava tudo, e o seu coração começou a bater mais depressa quando a viu. A sua voz tornou-se rouca, cava, ao dizer:
- O que é isto?
A voz não lhe respondeu, porque sabia que a pergunta não era para ela. O olhar dele fixou-se somente naquela esfera, onde conseguia ver imagens imperceptíveis, mas que lhe causavam medo, dor, frustração, nostalgia, paixão, receio, alegria, pena, incerteza, susto, e mais vinte mil leques de emoções que ele não soube reconhecer. E apesar de não se ter apercebido, ele sentiu tudo isso ao mesmo tempo, durante o tempo em que ficou estarrecido olhando a bola flutuante.
Num instante o esférico desfez-se em pó, e o seu coração voltou ao estado normal. A magnífica poeira continuava a iluminar o espaço, com aquela sua luz muito característica. Sentiu-se triste pela perda da forma esférica, mas recompôs-se tão rapidamente que nem se apercebeu que ficara triste.
- Desculpa - disse a voz, arrependida.
Antes de conseguir perguntar porque a voz pedia desculpa, todas as microscópicas partículas pirilampescas explodiram num clarão que lhe cobriu os olhos de branco. Não entrou em pânico à conta disso, mas sim da forma que sedosamente aparecia por entre a névoa branca, à medida que esta desaparecia. Era uma figura de mulher, tão eloquente nos seus passos em direcção à sua cama. Luminescia da mesma forma que a esfera que desaparecera.
O seu coração começou a correr mais depressa do que alguma vez o fizera. A sua garganta apertou-se, quase cortando a passagem do ar, e a sua visão entorpeceu, à medida que a água lhe assomava aos olhos cautelosamente. Não conseguia falar, e a mão que ergueu para acariciar aquela figura conhecida tremia. A mulher sorriu, e ele tristemente sorriu de volta, fazendo lágrimas cair na colcha. A voz atrás do guarda-fatos fungou. A mulher aproximou-se dele pela lateral da cama, e ele aproximou a mão do seu cabelo de luz.
Os dedos não lhe tocaram, mas ele sentia neles um calor humano, enquanto que eles e a luz ocupassem o mesmo espaço. E apesar de ser só luz, sentiu um cheiro que não estava no quarto, sentiu vozes tão difusamente fracas que não podiam estar a ser pronunciadas naquele momento, e sentiu clarões de imagens que ele não estava a ver. Assustou-se e retirou a mão. A mulher usou os lábios para desenhar palavras no ar que não obtiveram som, mas ele percebeu o que fora dito. E do nada, a voz falou.
- Acabou.
A luz precipitou-se na direcção do seu peito e de lá não saiu. Com a cabeça deitada no travesseiro, chorou lágrimas que não sabia serem prateadas até adormecer, olhando na sua mesinha de cabeceira um momento congelado que a mesma pessoa que o visitou vivera. Em tempos.
Wednesday, October 28, 2009
The Road Taken
Mas nesse dia, uma imagem colou-se na minha memória, e para sempre a recordaria, quando soube do que acontecera. Conhecia o moço muito superficialmente, falara com ele duas ou três vezes, quando em grupo. Mas nunca adivinharia o que se iria passar.
Quando passei por ele, nesse dia, nesse mesmo jardim, ele estava todo curvado sobre si mesmo, olhando para os joelhos, agarrando nessa zona das calças com muita força, como se estivesse a tentar prevenir um vómito. A sua face estava vermelha, olhos contraídos, respirava com dificuldade. Senti uma vontade de ir falar com ele, saber o que se passava, e até estender-lhe uma mão, se necessário fosse. Mas antes que conseguisse virar para trás, já ele passava por mim, bufando penosamente, indo rápido para algum sítio. Nunca mais o vi. Só vi depois a sua face no jornal.
Friday, August 28, 2009
Olá
Aquela mão morna no meu rosto
Monday, August 3, 2009
Dizer Adeus
Quando me sentei naquele banco de jardim, faltavam dez minutos para as três. A pontualidade sempre fora um traço característico meu, mas dessa vez, na ânsia de chegar a tempo, excedera-me e chegara demasiado cedo. Por isso, coloquei os fones do meu leitor de mp3 e ouvi as nossas músicas, de forma a ter algo com que me entreter enquanto esperava por ti.
Olhava os transeuntes passarem, os mais novos de bicicleta e os mais velhos numa marcha acelerada, alguns passeando de mão dada de sorriso na cara, apreciando a beleza mútua que eles partilhavam, e a beleza que a própria natureza exibia nas suas frondosas árvores e contagiantes flores, nos belos jardins verdes e no azulíssimo céu, para seu deleite. Eu, fechava os olhos, com força, para não me lembrar de ti, para me esquecer de quão ardentemente eu queria fechar a minha mão na tua, observar o intenso céu celebrando connosco a alegria de viver, sentindo o refrescante odor das amarelas flores, e sentar na macia relva, à sombra de uma grande árvore, vendo como o vento mexia com a sombra dos ramos no teu rosto, e como, quando movidos por uma fresca brisa, deixavam por um momento um gentil raio de sol fazer brilhar o teu olho, pregado no meu.
Fazia os impossíveis para limpar da minha consciência toda a eloquente beleza da natureza à minha volta, e concentrava-me em escutar a bateria que um maestro de dupla baqueta e com uma orquestra de tambores e pratos juntava à música. A nossa música. Desisti de tentar identificar as batidas, os sons, os ruídos, o passo que marcava a canção, porque lembrava-me de ti. Teria de ouvir algo mais rock. Algo mais intenso, algo que nunca caberia nos nossos momentos de intimidade emocional que teimavam em serem acompanhados pelo nosso partilhado interesse em música.
Tamborilava as minhas pernas com os meus dedos, pensando na escala musical que um certo pianista percorria com os seus mágicos dedos, num teclado branco e preto, que, na sua maravilhosa simplicidade, criava beleza, quando tu chegaste. Sentaste-te ao pé de mim, observando-me concentrar em algo que tu desconhecias ter como objectivo afastar a minha mente de ti o máximo de tempo possível. Mas tu sentaste-te ao pé de mim, como eu me forçava por me esquecer que era esse o preciso motivo da nossa contemporânea presença no mesmo espaço.
O silêncio do fim da música deixou-me sentir o teu movimento perto de mim. Mas antes que eu o pudesse aperceber, já o meu inconsciente cheirara o teu shampô. Virei-me, engolindo em seco como nunca na minha vida, nada preparado para enfrentar o teu rosto, como pensava que estava. Desarmaras-me ainda não sorriras.
- Olá. - disseste.
- Olá. - forçei-me a responder, com uma alegria triste na voz, numa palavra agridoce.
- Como estás? - perguntaste, ao que eu fechei os olhos em dor, perante a impossível banalidade que tentaras impôr à conversa.
- Pelo amor de Deus. Nem penses... Para além de isso ser uma tentativa frustrada de evitares os sentimentos que estão claramente à flôr da pele, atreves-te a perguntar como eu estou?! Como achas que estou?! Estou bem, sabes?!? É! ESTOU SUPER-BEM!
- Fábio... Por favor...
- O que vieste aqui dizer, diz de uma vez por todas!
- Tu sabes... - começaste, conseguindo na perfeição ausentar da voz o embargo que as lágrimas normalmente lhe causam. - Vim para dizer adeus - pelo que foi uma surpresa completa quando, olhando para a tua face para te confrontar por essa frase, a encontrei sendo o terreno por onde dois rios de lágrimas corriam. Perdi a fala, e todas as palavras de injusta raiva desapareceram com o golpe que o meu peito sofreu ao ver-te em sofrimento.
- Porquê? - limitei-me a perguntar, deixando também as lágrimas escaparem-se pelo canto do olho, eu sim, com o habitual nó da garganta toldando-me a fala. Falei baixinho...
- Não sei - respondeste, e pegaste-me na mão.
- Nem eu - disse, sem saber o que mais poderia ter dito, ao invés deixando as mãos terem o seu próprio diálogo, agarrando com força a tua: "Não quero ir", disse uma; "não quero que tu vás", disse a outra. Mas nenhuma boca proferiu essas palavras, nem expressou esses desejos, pois não precisavam de serem expressos - estavam subjacentes nas lágrimas que brotavam copiosamente. Não havia mais que dizer que não tivesse já sido dito, seja com palavras ou silêncios ou ausências ou emoções ou o corpo, se bem que o corpo não resistiu a manifestar-se, e por isso nos abraçámos. E por isso nos agarramos com tanta força, na esperança que não tivessemos que largar eventualmente, como depois largámos, e durante tanto tempo, implorando que esse tempo durasse o resto da vida e não apenas cinco minutos, como durou, e com o habitual encaixe corporal, esse nunca morrendo num abraço nosso.
Quando chegou a hora de largar dos sonhos que durante tanto tempo nos ocupou o sono e o estado consciente, largando o outro em si, as mãos demoraram-se no braço alheio, nunca querendo despegar, nunca querendo afastar-se mais do que aquela distância ridiculamente pequena que afasta todos os corpos os obriga a estarem sempre separados. Escorregaram pela pele do outro, roçando ao de leve na mão do outro, ainda resistindo ao impulso de agarrar o outro pelos dedos quando os dedos de ambos se tocaram antes de finalmente romperem contacto. Trocámos um olhar, filtrado pela água que ainda não limpáramos dos olhos, o único contacto equivalente ao físico em satisfação não sendo realmente físico. Dissemos adeus sem dizer uma palavra, porque nenhuma palavra ainda inventada teria sido capaz de exprimir a tristeza, a dor e a frustração de não poder fazer nada que inundava os corpos que partilhavam aquele banquinho mais do que era possível os corpos aguentarem.
As tuas pernas obrigaram a tua alma a afastar-se da minha, levantando-te o corpo, não antes de partilharmos o nosso último beijo, aquele que era o mais longo de todos, mas demasiado curto para nós naquele momento. Viraste costas às minha lágrimas, e avançaste com passos trementes para a saída. Vi a minha própria lágrima cair na relva, brilhando quando se abriu para o raio de sol que a ela se dirigiu. Trémula, entre a relva, piscou-me o olho.
Saturday, June 6, 2009
Serendipidade Divina
À medida que ela se deitava, seis fonts de luz fraca emergiram do nada, no meio do ar, à volta da cama. O quarto iluminara todo, levemente. As sombras fantasmagóricas dos corpos parados da mobília, rodeado por um azul forte, eram agitadas por ondas maritimas de intensidade. Os pequenos sóis azuis dentro do quarto eram disturbados da sua perfeita forma esférica por protuberâncias borbulhantes, subtis e belas, que as ia alimentando.
As esferas, como que mergulhadas por um líquido denso e escorregadio, iam aumentando vagarosamente, enquanto que a sua cobertura fluída ia ganhando forma humana. Quando as seis figuras etsavam completamente formadas, foram encobertas por uma película feita a partir do liquido gelatinoso que envolve as ainda visiveis esferas. As seis olharam docemente para o insciente copro enrolado nos lençõis, ao mesmo tempo, e um par de belas asas cresceram em cada um deles subitamente.
As angélicas asas cresceram tão repentinamente que algumas penas que as envolviam soltaram-se e esvoaçavam pelo quarto. A luz da lua cheia envolvia-as numa junção das duas luminosidades. As pequenas penas, belas na sua solidão, eram pirilampos azuis mínimos, enchendo o quarto com uma divindade inútil, impartilhavel para já com a inocente criança deitada na cama.
A criança mexeu-se, incomodada, afastando os lençóis envolvidas no mar do gracioso azul, para voltar a deitar-se em cima dela, agora banhada pela luz.
A criança já não conseguia dormir devido ao calor. Um dos anjos deixou cair uma lágrima ao ver a criança na sua plenitude física. Olhou para os outros, comunicando o desejo de não a ver sofrer. O anjo que transportava a espada desembanhou-a e num golpe súbito, fez passar a lâmina de luz pelo corpo da criança. Ela deixou imediatamente de se mexer.
Os seus olhos vazios começaram a chorar lágrimas azuis. Lágrimas que, em vez de escorrerem pelo rosto, pairavam no ar, imunes as leis da física. Depois da crinaça chorar tudo, as pequenas bolas de água luzidia juntaram-se numa maior, que depois ia crescendo.
Passando um pouco, um anjo nascera. Abriu a boca para fazer milhões de perguntas, mas todas foram respondidas antes que um som fosse formado. Ela baixou a cabeça para o chão, encolhendo as suas belas asas. O anjo mais próximo pos-lhe uma mão no ombro, a cirança anjo olhou-o com um misto de compreensão total e tristeza. Os sete abriram os braços para cima, abriram as asas e, olhando para o tecto, subiram para as estrelas.
A figura que chorara olhou para baixo a tempo de ver o padrasto entrar no quarto. Vinha cambaleando, saltando violentamente para cima do corpo imóvel da criança, transformando a divisão num inferno. Pegou nela bruscamente, em busca de um vida que pudesse violar. Viu que estava morta. Mas mesmo morta, ele tirou-lhe as calças.