Friday, December 4, 2009

Carapaça

Acordou sobressaltado numa cama ensopada em suor. E foi no momento do seu sobressalto que deixou de o sentir. O sentimento interrompeu-se.

Sentia-se febril, doente. Se tivesse olhado o relógio, teria visto que faltava pouco para as dez da manhã, mas houve algo que o intrigou. A luz amarela do sol lá fora não era a mesma que dava luz ao quarto. Essa luz vinha de perto da porta, mas a sua proveniência estava escondida pelo guarda-fatos. Apesar de ser uma luz branca, era acolhedora, quente. Não conseguia ver de onde a luz provinha, mas sentiu curiosidade suficiente para ir ver.

Contudo, antes de conseguir sair da cama, o sol apagou-se. Agora, o próprio quarto brilhava aquela estranha luz de volta para o ar, como se a reflectisse. E então uma voz falou.

- Escusas de te levantar. Não me podes ver.

- Não és tu que eu quero ver.

- Então vem.

Apesar da vontade, de novo ele não saiu da cama, pois antes de pôr os pés no chão, uma esfera de um prateado puro levitou desde o canto que o guarda-fatos fazia com a parede até à frente da sua cama. Era essa esfera que iluminava tudo, e o seu coração começou a bater mais depressa quando a viu. A sua voz tornou-se rouca, cava, ao dizer:

- O que é isto?

A voz não lhe respondeu, porque sabia que a pergunta não era para ela. O olhar dele fixou-se somente naquela esfera, onde conseguia ver imagens imperceptíveis, mas que lhe causavam medo, dor, frustração, nostalgia, paixão, receio, alegria, pena, incerteza, susto, e mais vinte mil leques de emoções que ele não soube reconhecer. E apesar de não se ter apercebido, ele sentiu tudo isso ao mesmo tempo, durante o tempo em que ficou estarrecido olhando a bola flutuante.
Num instante o esférico desfez-se em pó, e o seu coração voltou ao estado normal. A magnífica poeira continuava a iluminar o espaço, com aquela sua luz muito característica. Sentiu-se triste pela perda da forma esférica, mas recompôs-se tão rapidamente que nem se apercebeu que ficara triste.

- Desculpa - disse a voz, arrependida.

Antes de conseguir perguntar porque a voz pedia desculpa, todas as microscópicas partículas pirilampescas explodiram num clarão que lhe cobriu os olhos de branco. Não entrou em pânico à conta disso, mas sim da forma que sedosamente aparecia por entre a névoa branca, à medida que esta desaparecia. Era uma figura de mulher, tão eloquente nos seus passos em direcção à sua cama. Luminescia da mesma forma que a esfera que desaparecera.

O seu coração começou a correr mais depressa do que alguma vez o fizera. A sua garganta apertou-se, quase cortando a passagem do ar, e a sua visão entorpeceu, à medida que a água lhe assomava aos olhos cautelosamente. Não conseguia falar, e a mão que ergueu para acariciar aquela figura conhecida tremia. A mulher sorriu, e ele tristemente sorriu de volta, fazendo lágrimas cair na colcha. A voz atrás do guarda-fatos fungou. A mulher aproximou-se dele pela lateral da cama, e ele aproximou a mão do seu cabelo de luz.

Os dedos não lhe tocaram, mas ele sentia neles um calor humano, enquanto que eles e a luz ocupassem o mesmo espaço. E apesar de ser só luz, sentiu um cheiro que não estava no quarto, sentiu vozes tão difusamente fracas que não podiam estar a ser pronunciadas naquele momento, e sentiu clarões de imagens que ele não estava a ver. Assustou-se e retirou a mão. A mulher usou os lábios para desenhar palavras no ar que não obtiveram som, mas ele percebeu o que fora dito. E do nada, a voz falou.

- Acabou.

A luz precipitou-se na direcção do seu peito e de lá não saiu. Com a cabeça deitada no travesseiro, chorou lágrimas que não sabia serem prateadas até adormecer, olhando na sua mesinha de cabeceira um momento congelado que a mesma pessoa que o visitou vivera. Em tempos.

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