Thursday, August 25, 2011

Violoncelos e Sacos de Cimento

Carregar violoncelos e sacos de cimento ao ombro. Em vez de folgar, de descansar e repousar do diário martírio da sucessão de sacos de cimento, o meu ombro esquerdo não tem remédio, e hoje, de violoncelo ao ombro, vou a repetir o ritual. Queixa-se quando sente o baque daquele corpo enorme de madeira na pele, alivia um pouco, mas depois, à medida que o vai carregando, vai gemendo mais dentro da carne. Range. Tresloucado, diz ao cérebro que não aguenta mais. E pouso-o. É a vez do ombro direito.
 
Oupa! Aqui vai! Ora... vamos lá...! E trôpegos sob o peso extra meus pés me levam rua fora, empunhando um violoncelo como se de uma espingarda se tratasse, daquelas que se viam passeando avenida fora, vomitando um cravo num abril do passado. As pessoas olham quando passa o gigante, castanho, imponente. Apesar dos queixumes que já sinto do ombro, sinto-me bem com a atenção. E para servir a dois propósitos, baixo o instrumento, sento-me na mureta da avenida e, com aquele corpo entre pernas, armado de um arco, começo a disparar flechas.

Uma senhora atarefada que passava mesmo à minha frente, desapercebida de mim, pára mal ouve a primeira nota. Prolongo-a, lenta, melodiosa, bela. A senhora pousa o saco das compras, já lhe doerão os dedos, pára, escuta e olha. Suspendo a nota, e no momento certo, atiro com a segunda e a terceira, já não tão lentas... mas ainda assim, quero primeiro chamar à atenção. Só depois inicio a música ao ritmo normal.

Não levanto a cabeça uma só vez, olhos trancados no cavalete e no braço, escorrendo cordas abaixo, cordas acima, à medida que arco, de um lado, e dedos, mais acima, modulam o ar à minha volta. O som reverbera por entre o ar, faz vibrar as gotas de oxigénio, sinto-o nos meus ouvidos, sinto-o na pele, sinto-o no suster de respirações de quem me segue o olhar. O meu gigante castanho não se queixa, estará a gostar da atenção tanto ou mais do que eu, já que ele é a estrela que todos observam.

Há quem bote uma moeda para a minha frente, e é então que levanto a cabeça para observar. É um senhor em idade de reforma, mas jovial em aparência e trejeitos. Arrepio caminho por entre a pauta na minha cabeça, mas não deixo de o olhar por uns momentos. Quando acabo a música, palmas soam, entre elas a dele, e é a ele que digo "Meu caro senhor", apanhando do chão a moeda de dois euros, "não quero dinheiro, obrigado. Agradeço-lhe o afecto que representa, mas não quero mesmo dinheiro, não é por isso que toco na rua", parece embasbacado. Recebe o dinheiro de volta e enfia-o no bolso. "Então tocas mais um bocado", e agraciando-o, inicio mais uma melodia.

Atiro com as notas para o ar, como fiz à moeda. Paguem-me com o que lhes dou, com som. Paguem-me com o som das palmasm, que é por isso que ando tanto de violoncelo ao ombro, e se realmente me querem dar algo do mundo, paguem-me uma sandes e uma cerveja. Para que amanhã, depois da tortura que será o resto da viagem de hoje, os meus ombros alimentados se queixem um pouco menos quando começarem, ao raiar do sol, nos sacos de cimento.

1 comment:

  1. The greatest quality of a writer and what turns someone who writes into a writer, is the ability to live other people's lives, wish other people's dreams, suffer other people's problems. And you, my friend, do that in a beautiful way. I like it. It portrays, in a very believable way, the life of a worker / musician.

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