Saturday, August 13, 2011

Da cave

Depois de tudo o que vivemos talvez não exista mais nada. Lembro-me de uma cela sombria e de um frio nas costas. Depois de tudo o que vimos talvez não exista mais nada. Lá longe rodopia uma maré estranha e concisa. Entre o passado e o presente, entre a dor e a solidão. E de nós nenhum voltará. Nenhum voltará com asas se nelas se entorpecem os dias até que definhem por si mesmos. Do branco da alma nenhuma pureza.
Quando me tiraram da cela escura dos dias saí sem mim. Deixei o corpo e a razão que pensava ter. Nas paredes escuras de um negro comum esqueci-me de ti. Esqueci-me dos olhos e da cara e entre nós só as tuas mãos. Só a tua vontade de elevar algumas coisa que na verdade só diminui quem vê. Quem espera e quem sonha.
Quando o vento chegou eu já não podia avançar. Quando o vento chegou e me empurrou para um mundo eu já não era ninguém. E o vento soprava. Corria-me no corpo, arrepiava-me por dentro. Mas eu era uma estátua. Eu estava vazio de mim. Quando a maré baixava não havia mais nada senão essa cela sombria de onde conto os meus dias. Onde os escrevo com uma ternura perdida, onde desenho os sonhos que nunca terei. São pinturas rupestres dos dias que não vi mas podiam ser meus.
Nas paredes desenho as caras, os braços, os amores que nunca tive. Nas paredes de uma cela desenho a preto e branco as histórias que afinal não pude viver. Tenho no meu corpo um velho que definha, tenho em mim a criança que chora sem que tenha vontade de o fazer. Quando a maré sobe já não é mais dia. Quando a maré sobe porque nos puxa o tempo já não somos ninguém. E talvez aí… num planalto sedento de tudo possamos ver enfim, como nos afogaram no mar.
E de lá, desse fim de todas as coisas, dessa solidão que se perde em nós quando nos perdemos de tudo podemos enfim ver, que nós, que nunca vimos o mar fazíamos afinal parte das ondas. Fazíamos parte de um sítio mais eterno que o fugaz horizonte. Não sabíamos da cela como o mundo era mais vasto, não sabíamos de lá como em nós viviam os sonhos que nunca pudemos ter.

6 comments:

  1. Lindo! Quando estamos presos em nós... boa descrição.

    Bjs

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  2. O mar, possui uma simbologia incrível.
    Se usarmos a principal simbologia que o mar pode nos remeter, podemos obter um olhar diferente sobre esta sua bela história. Bela, e triste.
    Tão solitária entre vírgulas, mas que no fim descobre que faz parte de um todo; sendo nós as ondas, constituindo um grd mar.
    O mar, que sempre aparece nos meus sonhos noturnos, obrigando me a fugir das tais ondas que me querem sempre puxar pra si. E foi então que descobri a sua simbologia.

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  3. O mar pode ser uma coisa muito boa ou uma coisa muito má dependendo de como nos sentimos. Mas tem sempre uma energia muito poética :)

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  4. No dicionário dos Símbolos, por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, um dos significados referente ao mar:

    "Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a incerteza, de dúvida, de indecisão., e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte."

    Adoro o mar!

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  5. A simbologia que algo adquire não pode vir de livro, Alish. Tem que vir de dentro de nós. Por exemplo, para mim, o mar não é nada disso. Para mim, o mar simboliza o intransponível, o derradeiro obstáculo. Podes ir para qualquer lado no mundo, atravessar a Eurásia de uma ponta à outra, de Sagres a Pequim, mas chegando a qualquer um desses dois sítios, páras. Porque o mar não te deixa passar. Então, o mar tem a simbologia que tiver para ti, independente do "dicionário dos Símbolos, por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant". Claro que pode funcionar como referência para certas coisas e situação, mas em última instância, e porque o pós-modernismo nos mostrou que cada leitor "cria" uma obra só para si a partir de um único texto, tu também o podes fazer.

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