Wednesday, August 10, 2011

1. A Guerra

'Mamã, eu também quero lutar' era o desejo de todos, altos e baixos, gordos e magros, feios e bonitos, corajosos e fracos - e os que morreriam e os que não morreriam. Todos queriam empunhar espadas, independentemente da morte.

Todas as semanas era realizado o que os outros chamavam um rito fúnebre, ao Domingo, como de costume. Os meninos viam ser enterrados os corpos dos seus papás, que chegavam no Sábado ainda fora dos caixões, apressada e disfarçadamente envoltos em mantos, sabiamente negros. Caixões não preparados para os que chegaram, mas para os que viriam, alguém, quem, não sabiam. Não sabiam que nomes pôr no mármore, sabiam apenas que havia mármore a ser preparado e caixões a serem envernizados.

Todos os dias havia reunião no adro da igreja para ouvir notícias da guerra. Todos os dias um oficial do governo era enviado pela Cidade para dar as novas, de aldeia em aldeia, do que se passava 'lá fora'. 'Lá fora' era o que diziam, para nos distraír do cá dentro, um reboliço parecido ao da guerra. Um reboliço que se tentava apaziguar, amainar, ao contrário da guerra lá fora. Todos os dias, viemos a saber no fim, isolados de quem nos fora tirado, aprendemos de que morriam uns e iam a morrer outros e queriam ir morrer mais uns ainda por causas mentidas. Mas todos os dias, no fim de missas diárias, rezadas pelas almas dos que partiram, íamos ouvir o que o senhor de fato, fato como nenhum de nós tinha ou sonhava existir, sabia da guerra. O que nós não sabíamos, nem nunca soubemos.

Todos os sábados apertávamos corações e tomates para irmos ouvir morrer amigos e maridos, de se lhes dizer o nome. Eram sentenças passadas pelo senhor de batina, cujo único resultado era ou vida ou morte. Ou morte. Com palavras em maiúscula éramos ceifados das nossas esperanças, ceifados que eram os nossos irmãos pela boca do padre, nossos pais, filhos, enamorados, noivos até, maridos e cunhados, padrastos, padeiros de todos os dias e leiteiros de de vez em quando, e o senhor dos pombos, o porteiro da escola, o senhor doutor da nossa terra, que fora cuidar dos coitados, sará-los daquilo que o que lhes era imposto lhes fazia, ah, e o rapaz do futebol, que tão bem que ele jogava, não morreu mas ficou sem uma perna, e o amigo dele, que o desamparou do outro lado, caíam que nem tordos, os que nos saíam da beira, levados por Alguém, iam voar e vinham cair os corpos à terra que os viu nascer, e que era lei que os visse mortos, porque morrer não podia ver que iam morrer longe, vinham chover as carcaças que ficavam, lembrar-nos que tantas vezes víramos aqueles rostos vivendo em várias dezenas de alturas, vivos, chorando ou rindo, comprazendo-se ou dolendo, não importa, mexiam membros e diziam cousas, eram nossos vizinhos e nossa família, e foram para o estrangeiro morrer, longe de quem lhes queria bem, de quem não queria que fossem, longe do regaço da mãe e do colo da enamorada, longe até da mão dura do pai que tão bem que sabe o raro carinho, iam para o desconhecido, armados com o que não lhes fazia falta dentro portas, e desarmados do importante, lanternas para ver no escuro, açorda da mãe, caldo verde da avó, doce de laranja da mana mais velha, que tão bem que faz doçaria, chora agora a coitada desalmada na calçada do cemitério, ela mais a noiva do defunto, pobre dela que viuvou antes ainda de casar, choram ambas que nem madalenas em frente aos portões da casa eterna, para onde vai o corpo do mano mais novo, vinha namorando a menina dos farias desde quando ainda era piqueno e só corria por entre prados, vai numa procissão de negro, mas a mana leva o doce de laranja que tanta falta fez ao joaozinho pelas terras inimigas, zinho o tanas, era já um homem, não se via o homem, feito que estava, arrepiando caminho para a cova, olha-o, vai atrás do pai e vem o filho dos correias atrás, onde é que era um menino, era joao de corpo e alma feitos, só não vai a enterrar pelo próprio pé porque a pé já foi ele para morrer, que descanse agora o homem corajoso, depois de tanta guerra, fome que terá passado, medo que terá tido, matança que terá visto, amizades sem que terá ficado, comandantes que o terão amedrontado, saudades que terá tido, cuecas que terá borrado, balas de que se terá safado, emboscadas que lhe terão acontecido, armas que terá disparado, vermelho que terá sangrado, sangue que terá derramado, loucura que o terá invadido, céu que lhe terá caído, terra que lhe terá fugido, alma que terá perdido, antes do corpo lhe ter perecido.

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